Fumaça

16/03/2011

era você, pantera da loucura,

a maior culpada pelos vícios,

amiga dos becos, dos meretrícios,

com a mente livre e insegura

 

invadia o sonho e os resquícios

eram a sombra de uma aventura

em seda e com grossa espessura

que cospia fogo desde o início

 

qual lembrança tropeçando ao chão

era o estrondo de uma gargalhada

que não hesitava em vir acompanhada

 

tínhamos os dias livres de perdão

mas a liberdade não fugia da escolha

e tampamos o passado com uma rolha

 

Calor

29/11/2010

Diante do calor sou eu quem calo;

Frente ao tédio não posso abdicá-lo.

Segue, calor iridescente,

Avante, gritante.

Negue a minha dor latente.

Continue seguindo adiante

E seja uma alternativa ao instante

Presente, constante e entorpecente.

 

Metáfora da febre de um doente;

A minha ferida aberta é evidente.

Quê faço? Grito?

Espero pelo frio?

A dor e o calor, é esquisito,

Parecem negar o meu vazio.

Anima-me saber que o clima conseguiu

Deixar meu sofrimento ainda mais bonito.

Conversa

22/11/2010

Não. Não me surpeendi quando tocaste

Meu coração com os teus olhos e disseste

Que eu teria de me livrar das minhas vestes

E dos meus jeitos, das roupas, do desgaste

 

Que me era beber da mesma bebida

Da qual tu bebias com tanta felicidade.

Amiga, há ‘vida’ na palavra ‘novidade’.

Mas não há mais novidades em minha vida.

 

Não foi sincero aceitar o que tu me disse,

Não foi justo para mim que eu me despisse

Para vestir as tuas tolas fantasias

Como eu fiz, porque dentro de ti, todavia,

Não eras tu quem me amava como eu era.

Dentro de ti havia sempre a mesma fera

Que me atacava e que depois me consumia.

 

Um Sonho de Morte

19/11/2010

Sonhei que estávamos no Inverno, numa dessas noites estranhas em que a névoa pálida costuma descer do céu – ou levantar das profundezas – para acariciar e beijar a terra e as árvores. Perdido (não como um náufrago ou coisa do tipo, embora todos nós sejamos náufragos do asfalto), eu caminhava por essas velhas ruas do centro, de onde parecem brotar, de cada beco, cem histórias de amor, traição e morte. De onde ainda se ouvem, se colarmos com muita atenção nossos ouvidos à friagem rouca dos muros de pedra, os gritos dos antigos penitentes e o sibilar dos chicotes dos capatazes ardendo-lhes a pele.

É. Naquele sonho houve tempo para que eu pensasse nos que sonharam antes de mim. E naquela noite o corte afiado dos velhos punhais era uma lembrança sedenta que ameaçava minha garganta. Toda noite é noite de perigo, sobretudo as noites frias e nevoentas, pois a neblina, essa profética inquilina, me oferecia o fastidioso travesseiro de fronhas brancas para que nele eu me deitasse.

Minha bota pisava o chão úmido às vezes conturbando alguma poça d’água porque talvez dentro do sonho a tarde tivesse sido chuvosa (nunca me acostumei com a idéia de que naquele sonho a noite era eterna). Eu enrolava minhas mãos dentro do sobretudo, afundando uma luva na outra, escondendo-me sob a rigidez protetora daquele amigável agasalho. Entrementes, calculava os meus passos, prestava atenção aos ínfimos pormenores daquele som solitário, que, como um metrônomo, povoava as ruas do centro. Não. Ninguém cruzou o meu caminho naquele sonho andarilho. Era a solidão daqueles becos, a angústia, o ermo deserto daquele isolamento noturno que me dava medo. O medo que eu sentia era aquele mesmo que sentimos quando acordados; aquele medo que nos faz olhar para trás, mesmo sabendo que ninguém nos acompanha. Eu fugia da solidão, mas não sabia que era ela que me acompanhava.

Como eu disse, assaltavam-me a memória as histórias de fogueira que contavam nossos antepassados. Uma delas, em especial, já há muito esquecida (só a linguagem dos sonhos é suficiente para que nosso inconsciente resgate lembranças tão tristes e longínquas), falava de um crioulo da região, famoso pela habilidade com o facão que levava consigo. Diziam os moradores da antiga vila que esta cidade outrora havia sido, que ele, o crioulo, havia aprendido a nadar com Mãe D’água ou coisa assim, porque sobrevivera a uma emboscada – uma tentativa de afogamento – que lhe fizeram na foz do córrego que por aqui antes passava. Ficou sumido por uma semana, mas deu cabo em todos aqueles que haviam armado para ele. Nesse meio tempo os moradores resolveram inventar toda sorte de boatos a seu respeito. Hoje o riacho já se encontra soterrado e do crioulo, que se chamava Tircino, não há outro que saiba, salvo algum velho que tenha ouvido essa história de outro velho.

A rememoração foi-se embora quando pisei um galho seco e seu barulho me trouxe de volta ao caminho que percorria. Eu deixava para trás o labirinto de tortuosas vielas, de onde os olhos sorrateiros de Tircino faziam vigília; em cada beco, em cada latão de lixo revirado por um gato vagabundo, nos secretos e recônditos canteiros de pó. Como sonhava, não sabia de onde vinha, nem para onde ia. Talvez fosse o caso que, naquela situação, só importava-me o caminhar e o cheiro de terra molhada que agora penetrava mais forte em minhas narinas. Eu pisava agora um tapete de folhas, que tinha as cores da noite e que se estendia em minha frente, por toda a calçada que ladeava o cemitério, quando, enfim, passei em frente ao velório que ficava do outro lado da rua.

Não sei o que me fez desviar a atenção do tapete de folhas – elas em muito me chamavam a atenção. Já havia feito e refeito esse caminho tantas vezes, embora acordado, mas nunca me ocorreu que um dia, andando nesta calçada, eu haveria de olhar para o lado e ver meu nome completo escrito no painel onde se escrevem os nomes dos defuntos. Não foi pânico o que senti, porque nos sonhos nossos sentimentos não correspondem com a mesma lógica aos estímulos que recebem. Fiquei, é certo, muito surpreso, indagando à noite o significado, ou a simbologia (embora não fosse aquele um sonho lúcido), daquele fato. Não parei de caminhar. Continuei andando, esperando aquele entendimento de mundo que só de noite nos visita.

Ah, mas até em meus sonhos sou incapaz de não ceder espaço à minha vaidade! Senti também, e esta é uma das lembranças daquele sonho que guardo com maior interesse, uma profunda indignação, porque o velório estava aberto e não havia ninguém por lá. Ninguém chorando, ninguém lamentando a minha morte, ninguém cobrando a entrada ou vendendo flores para um ninguém que as comprasse. Nem havia ao menos um retirante que fosse para cuspir em meu caixão. Não. Talvez nem meu próprio corpo estivesse lá, e nem o caixão. Os únicos que me tinham compaixão naquela noite eram as raízes velhas (que saltavam para fora do concreto da calçada) e as copas frondosas das árvores que, enfileiradas como num teatro de terror, abriam seus braços e sorriam aquele sorriso de trevas.

Do velório eu me distanciava, e voltava às velhas histórias que povoavam o grotesco imaginário popular. A voz de Tircino dizia, dentro de mim, serenamente, que, assim como ele, eu era apenas mais um personagem de uma tragédia que já fora escrita e encenada dentro da memória ulterior de um povo e que talvez eu nunca estivesse tão vivo agora que tinha outro nome: o meu nome de defunto. Disse-me que para conhecê-lo (devido a algum capricho mórbido do destino ele não podia revelar este meu novo nome), eu devia adentrar o cemitério e encontrar a minha lápide. Como eu poderia saber qual era minha lápide se não sabia meu nome? Esse tipo de pergunta seria conveniente e faria todo o sentido se eu não estivesse onde estava.

Escalei os baixos muros que me separavam do cemitério e não demorei até que encontrasse minha lápide; só havia uma grande lápide em todo o cemitério. Havia um barulho fresco de riacho nas redondezas A vaidosa lua iluminou os caracteres entalhados na rocha, e por um minuto toda a neblina se dissipou. Ali estava inscrito o nome que é a vida e morte de todos os nomes e que, de tão valioso, só a nós compete chamarmos dessa maneira: “Eu”.

Esbocei um sorriso antes de acordar empoçado em meu próprio suor, num emaranhado de lençóis amarelos.

 

 

Sono

08/11/2010

O que é dormir pra quem vê na chuva

Um amigo leal à tarde inteira?

Cada um ao seu modo, à sua maneira

e o sono é uma luva que veste o pensamento.

 

Eu ouço na chuva o esquecimento

De uma moça que morreu de soluço

E foi encontrada no carpete, de bruços,

Após um momento de descontração.

 

Mas dormir é um evento, uma exceção

Pra tristeza de quem evita existir.

 

No sonho há liberdade de ir e vir

E arde mais intensa nossa paixão.

Diabo

06/11/2010

Foras tu, diabo, que como uma aranha

Teceste o roteiro da minha ruína?

És tu, demônio de formas femininas,

O dono destas insondáveis artimanhas?

 

Se não distingo, na penumbra estranha

Do meu quarto, o contorno da minha sina

É porque me entorpeceram tuas toxinas

E porque aqui és tu quem sempre ganha.

 

Da tua beleza fizestes um baluarte

Onde os heróis morrem de aflição.

De que me vale engenho e arte

 

Se tu, diabo que não perde a calma;

Tu, que arruinastes meu coração,

Não hesitas em beber da minha alma?

Para você

16/10/2010

Tu disseste: “teus poemas
são elegantes, mas tristes,
e nessas rimas todas existe
um rastro de insegurança!”
É de algo que não te alcança
a composição dos meus poemas.

Pois disso eles são feitos:
de algo entregue e derrotado,
que caminha lado a lado
com a vizinha melancolia.
Visto sempre uma fantasia
para que eles sejam feitos.

Tu disseste que esses versos
te agradam, mas mais feliz
tu ficas quando um poema diz
coisas alegres e bonitas.
Mas mesmo que eu reflita
de mim só saem estes versos.

Meu insucesso vira poesia
e eu sei que pouco te interessa
a minha dor. A última peça
deste jogo é a tua, amiga.
E por mais que você o diga,
a ti dedico esta poesia.

Poema da Chuva

27/09/2010

Custo a aceitar que lá fora a chuva
Não molha os canteiros sombrios
Onde cresce flor alguma.

A noite trouxe com ela o frio,
E as gotas caem, uma a uma,
Ecoando em meus tormentos.

A tempestade a passos lentos
Decompõe com instrumentos
A solidão com a qual me contento.

A noite trouxe com ela o frio,
E as gotas caem, uma a uma,
Onde não cresce flor alguma.

Cigarros, papéis, flores; em suma,
São todos eles trajes de uma
Fanfarra que corre com a espuma.

Custo a aceitar que lá fora a chuva
Não passa de um evento qualquer
Perdido no calendário do mundo.

Custo a aceitar que alguém me quer
Assim: feio, cansado, imundo
E descalço sobre um tapete macio.

A noite trouxe com ela o frio
E de uma fresta na janela espio
A chuva que preenche o meu vazio.

Simbolismo

23/09/2010

Veja: o esguio sopro de uma flauta
é o que protege os meus ouvidos
– tão pálidos, tristes e agredidos –
da rispidez truculenta e incauta
de uma legião moderna de ruídos.

O meu sonho está bem longe: a léguas
de distância das profundas minas
em que dormiam as submarinas
doenças e medidas; esquadros e réguas
desenham o teorema da minha sina.

A verdade naufragou nesses poços
dos quais a violência é um apanágio.
A mentira conduz o presságio
e mastiga a carne e os ossos.
Somos todos filhos do contágio.

Fragmento

12/09/2010

No porto, perto de um abismo;
Em uma rima perdida entre
um rosto ofendido e o ventre
de um salgado eufemismo.

Eu disse adeus aos deuses
que se perderam meses
antes de mim mesmo

Eles habitavam à esmo
a saudade dos avisos
mornos, secos, indecisos.